quinta-feira, 19 de agosto de 2010
A dependência química começa em casa
Muitos dos dependentes químicos iniciaram seu relacionamento com as drogas exatamente no lugar onde se suporia que estariam mais seguros: dentro de casa. Na realidade, de acordo com a Dra. Sandra Schivoletto, psiquiatra, Coordenadora Executiva do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas e Responsável pelo Ambulatório de Adolescentes e Drogas do Departamento de Psiquiatria da USP - Universidade São Paulo, em entrevista exclusiva para esta reportagem, é em casa, em família, que as crianças aprendem como se relacionar com as substâncias químicas. A mesma opinião é defendida pelo psicólogo clínico Fernando Falabella Tavares de Lima, Diretor Clínico do Núcleo de Estudos e Temas em Psicologia, NETPSI, especialista em drogas e que também concedeu entrevista exclusiva para esta matéria. “Os pais são o modelo de comportamento adulto dos filhos”, diria a Dra. Sandra. “Não há dúvidas que as crianças e os adolescentes que iniciam o uso de remédios e drogas ilícitas vêem no exemplo das pessoas mais velhas uma atitude a ser imitada”, confirma o psicólogo Fernando.
Onde para cada problema existe uma solução química, a dependência química é a decorrência natural
O problema, segundo profissionais como o psicólogo Fernando e a psiquiatra Sandra, é que muitas famílias adotam um modelo de comportamento permissivo em relação às substâncias químicas, utilizando-as como alternativa para a solução imediata de suas angústias. A Dra. Sandra explica que, até o fim da infância, os pais são vistos como referência do que é certo e somente na adolescência, quando passam a ter contato com outros modelos de comportamento, que começam a questiona-los. Mas é na infância que o indivíduo estabelece sua forma de lidar com o mundo, com as angústias e com as emoções. A médica usa como exemplo o pai que chega em casa e, estressado, toma um whisky, ou a mãe que usa um calmante, como o Lexotan ®, para relaxar. “Ou o pai que, com problemas sexuais, toma um Viagra, ou a mãe que quer emagrecer e, em vez de fazer dieta ou ginástica e adotar hábitos saudáveis, toma um remédio para absorver menos gordura”, complementa ela com mais exemplos.
“Isso resulta em um modelo de que para qualquer problema, uma substância química é uma solução rápida. O que acaba acontecendo é que não se cria o hábito de, em família, conversar para resolver os problemas: toma-se logo um remedinho, bebe-se uma bebidinha, para qualquer coisa”, conclui a Dra. Sandra. “É bastante comum vermos pais que são viciados em remédios, álcool, tabaco, ou mesmo em trabalho, reclamarem ao saberem que os filhos adolescentes estão experimentando maconha, por exemplo”, exemplifica ainda o psicólogo Fernando.
Automedicação: exemplos que passam a mensagem errada
De acordo com a médica, famílias que se automedicam tem mais chances de que seus filhos abusem de drogas tanto lícitas quanto ilícitas, e este é um fato provado pela experiência clínica da maioria dos profissionais da área. Um exemplo clássico citado pela médica é o do uso de vitaminas quando a criança não quer comer, “para abrir o apetite”. A mensagem passada para a criança, explica a médica, está errada. Quanto a isso, o psicólogo Fernando complementa que um dos expedientes utilizados para “abrir o apetite”, com muita freqüência, é o tradicional Biotônico Fontoura ®, xarope que promete abrir o apetite, e que, segundo ele, possui 9% de teor alcoólico, contra 4 ou 5% de concentração alcoólica das cervejas. “O uso diário - às vezes mais de uma vez por dia - deste tipo de produto, administrado para crianças pequenas, pode induzir ao alcoolismo”, alerta o psicólogo.
O diretor do NETPSI lembra também que “não se pode esquecer ainda que há remédios que são feitos para crianças, embora contenham componentes tóxicos bastante fortes." As crianças descobrem a "farmacinha" doméstica e vão em busca daqueles remédios gostosinhos, como por exemplo alguns xaropes, com gosto doce, ou mesmo alguns comprimidos que parecem balas. Fernando recorda que um grande número de internações de crianças se deve ao consumo de remédios sem controle. “Os pais ou responsáveis devem ter o maior cuidado no armazenamento de remédios em casa. Não se pode deixá-los à mão de crianças: nunca é demais lembrar que remédios são drogas e devem estar guardados em locais fechados, fora do alcance dos pequenos”, alerta.
O imediatismo típico da adolescência
Junta-se a este modelo familiar descrito pela psiquiatra uma das características mais típicas dos adolescentes: o imediatismo. Com estes ingredientes está criado o ambiente onde a dependência química se instala. “O adolescente está preocupado com o agora, e não como o daqui um ano”, alerta a psiquiatra, explicando o porquê dele escolher o prazer imediato em detrimento da saúde no longo prazo. “Em um modelo familiar deste tipo, o adolescente não aprendeu a lidar com a tristeza, o cansaço, a frustração. Para aliviar os seus problemas, ele aprendeu que a saída é tomar um comprimido, beber alguma coisa, ou qualquer outra solução imediata que dê prazer e/ou alívio” continua e médica.
A psiquiatra lembra que crianças e adolescentes não aprendem com discurso, mas com comportamento, com exemplo, com coerência. E aí entram uma série de aprendizados indiretos, muitas vezes não relacionados com as drogas em si, mas que fazem parte deste modelo de que fala a Dra. Sandra. Segundo ela, “de nada adianta ensinarmos na escola as regras de trânsito se depois o pai passa no sinal vermelho na frente do filho: falta coerência na educação familiar”, acusa. “Os pais dizem que é proibido mentir, mas pedem para os filhos dizerem que não estão em casa quando alguém inoportuno telefona”, prossegue a psiquiatra, que ensina que o diálogo é o modelo que precisa ser implantado no ambiente familiar: “Para estar tranqüilo em relação ao que espera dos hábitos do filho no futuro, plante isso com ele desde o início. Não espere que ele lhe conte o seu dia se você não lhe conta o seu”.
O consumo de álcool e tabaco também começa em casa
De acordo com o Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Psicotrópicos, desenvolvido pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) realizado em 1999 em 24 cidades do Estado de São Paulo e publicado na edição nº 52 da Revista ‘Pesquisa FAPESP’ (abril de 2000), sob a reportagem de Marta Góes ‘A ameaça maior das drogas legais’, “as drogas que mais devastam os brasileiros podem ser expostas nas cristaleiras ou consumidas em festas de família”. Segundo esta pesquisa, “nas maiores cidades do Estado de São Paulo consomem-se álcool e cigarro em níveis tão altos quanto nos Estados Unidos, mas o uso de maconha, cocaína, crack e outras substâncias ilegais permanecem em patamares tão baixos quanto os de outros países da América Latina”.
Embora essa conclusão pareça mais um daqueles argumentos para legitimar o consumo da maconha, por outro lado desfaz a idéia de que álcool e tabaco não são drogas. O pesquisador José Carlos Galduróz, médico psiquiatra graduado pela Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo - Unifesp), onde fez o mestrado e o doutorado na área de Psicobiologia e também pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), que coordenou o levantamento, diz que o estereótipo de que droga é só maconha e cocaína contribui para o consumo intenso de álcool e tabaco e que, graças a isso, o álcool pode ser anunciado livremente e costuma ser vinculado pela publicidade até à imagem de atletas. Já se sabia que o álcool é o psicotrópico de uso mais difundido no País, mas a estridência dos meios de comunicação ao falar de drogas ilegais sugeria que elas estariam tomando a dianteira como ameaça social. De acordo com o Levantamento da Fapesp, “53% da população experimenta álcool pelo menos uma vez na vida e uma grande porcentagem dos que bebem se torna dependente: entre os homens, um em cada seis. Mais silenciado e em muitas instâncias protegido por uma capa de respeitabilidade, o álcool é consumido regularmente - de três a quatro vezes por semana ou, até, todos os dias - por 4,5% da população pesquisada, ou 673 mil pessoas.
De acordo com as conclusões do estudo realizado em São Paulo, o consumo de tabaco também causa alarme entre os especialistas. Pelo menos 39% dos habitantes das maiores cidades do Estado de São Paulo já fumaram alguma vez, aponta o levantamento. Destes, cerca de 20% - um número estimado em 3 milhões de pessoas - fumam diariamente e chega a quase 10% o número de dependentes de cigarro na população, muitos deles na faixa dos 12 a 17 anos (3,5% ou 84.000 pessoas).
O mais incrível é que uma outra pesquisa, do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), de 1997, com estudantes de dez capitais brasileiras, aponta que 40% dos entrevistados de 12 a 18 anos beberam pela primeira vez em casa.
Modelos de Prevenção
Segundo a Dra. Sandra, os modelos de prevenção à dependência química atuais visam os pais das crianças. “Peça para que os pais de hoje reflitam sobre os modelos familiares que eles tem e se não estão passando a mensagem de que há soluções químicas para qualquer problema”, sugere a médica. De acordo com a especialista, há trabalhos internacionais (Chilcoat, Haoward e James, Anthony, EUA, 1996) que mostram que o monitoramento dos pais com filhos ainda na infância, promovendo que estejam mais presentes na vida dos seus filhos, é capaz de retardar a experimentação das drogas e diminui o risco do uso de drogas ilícitas.
Com base nesta premissa, o rumo dos programas de prevenção aceitos pelos estudiosos sofreram alterações bastante contundentes. No entanto, não existem ainda dados conclusivos sobre os resultados destes novos modelos de prevenção, uma vez que não há ainda tempo suficiente para que a comprovação científica, que compara um modelo com o outro, ocorra. “O que se sabe ainda é intuitivo”, explica a médica. Na opinião dela, o programa de prevenção ideal visa os pais, a pré-escola, uma postura ativa em relação à saúde e mais as crianças do que os jovens, visando resultados em longo prazo.
De acordo com o psicólogo Fernando, “é importante que as ações preventivas não visem apenas o resultado imediato, como o obtido por técnicas do ‘modelo do terror’, por exemplo, através de depoimentos, fotos, estatísticas dramáticas que objetivam apenas a paralisação momentânea do comportamento. As ações preventivas devem ser a longo prazo, realizadas através de programas específicos para cada idade e população-alvo. Pouco adianta a utilização de palestras isoladas, o trabalho deve ser contínuo.”
Prevenção dirigida
O levantamento feito pela Fapesp comprova a tese de Fernando de que as campanhas de prevenção devem ser dirigidas a cada população, inclusive com abordagens diferentes para homens e mulheres. De acordo com o estudo, embora inicialmente todos sejam expostos da mesma maneira ao consumo do álcool, por exemplo, enquanto um em cada seis usuários do sexo masculino se torna dependente, isso acontece apenas com uma em cada 17 mulheres. Em cada quatro usuários de maconha, três são homens. Em contrapartida, no que diz respeito ao tabaco, as mulheres são vítimas preferenciais - uma em cada quatro que experimentam cigarro se viciam, contra um em cada cinco homens. Na faixa etária de 35 anos ou mais, há um número discretamente maior de dependentes do tabaco entre as mulheres.
No caso dos estimulantes, em geral moderadores de apetite, como Inibex ®, Hipofagin ® e Moderex ®, para voltarmos ao exemplo das drogas que são compradas em farmácias e habitam as residências ao lado dos tradicionais xaropes e analgésicos, nota-se um nítido predomínio feminino. Com base na pesquisa realizada em São Paulo, concluiu-se que as mulheres consomem quatro vezes mais este tipo de psicotrópico do que os homens. De acordo com Galduróz, este dado já aparecia muito claramente na pesquisa com estudantes, também realizada pela Fapesp, e que exprime a obrigação de um modelo de beleza baseado na magreza, imposto às mulheres pela moda. Este mesmo dado explica também a predominância do uso de ansiolíticos (benzodiazepínicos) entre as mulheres: 1,7% em contraposição a 1% dos homens. Este tipo de remédio é usado para compensar os efeitos tensionadores causados pelos moderadores de apetite.
Ainda sobre os modelos de prevenção, Galduróz lembra ainda que a informação rigorosa, assim como o diagnóstico certo, embora sejam fundamentais para enfrentar o problema da droga, são apenas partes da solução. De acordo com o pesquisador, “informação sozinha não muda nada. Todo mundo sabe que cigarro dá câncer e ainda assim fuma; adolescente sabe do risco de transar sem camisinha e engravida”. Partindo de informações do Levantamento Domiciliar, quase 50% da população das grandes cidades considera beber um ou dois drinques por semana risco grave, mas nem por isso os índices de consumo e dependência de álcool são menores. O pesqeduisador acredita que “a informação tem que ser trabalhada em campanhas, currículos escolares e em políticas de saúde pública”. Ele lembra que todo o investimento do governo americano em repressão, na última década, não impediu que o país se tornasse o maior mercado consumidor de drogas do mundo.
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