Uol

sábado, 16 de março de 2013


Estudos Avançados

Print version ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.12 no.33 São Paulo May/Aug. 1998

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141998000200008 

TEORIA DA DEPENDÊNCIA

De dependência em dependência: consentida, tolerada e desejada


Paul Singer


SITUAÇÕES DE DEPENDÊNCIA sempre haverá enquanto nações desiguais em desenvolvimento, tamanho, força etc. se mantiverem em estreito relacionamento mútuo. Mas estas situações diferem entre si e é isso o que importa. Fernando Henrique Cardoso (El proceso de desarrollo en América Latina: hipótesis para una interpretación sociológica, Santiago, Ilpes, nov.1965), num texto preliminar ao seu hoje famoso livro com Enzo Faletto, introduz o conceito de dependência nos termos: "A vinculação subordinada das economias subdesenvolvidas ao mercado mundial se manifesta no plano mais dinâmico do processo de desenvolvimento por uma série de características básicas no modo de atuação e na orientação dos grupos que aparecem no sistema econômico como produtores ou como consumidores. Esta situação de dependência supõe em suas situações extremas que as decisões que afetam a produção ou o consumo duma economia dada se tomam em função da dinâmica das economias desenvolvidas com as quais a economia subdesenvolvida mantém relações de dependência. As economias baseadas em enclaves coloniais constituem um exemplo extremo dessa situação" [sublinhado no original P.S.].
Como se vê, trata-se de dependência econômica de países independentes politicamente mas subdesenvolvidos, como os da América Latina, que, para se desenvolver, condicionam suas decisões "à dinâmica das economias desenvolvidas" de que dependem. A principal contribuição de Cardoso e Faletto para o melhor entendimento da questão foi apontar para situações distintas de dependência, mostrando que em cada uma se verifica uma correlação específica de força entre as classes sociais, tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos.
A dependência surge dum complexo jogo de conflitos e acordos entre classes e frações de classe, do qual resultam processos de desenvolvimento que recolocam, de tempos em tempos, os seus próprios fundamentos. Transformações do capitalismo, que em geral se originam no centro, ensejam o surgimento de novas situações de dependência, à medida que elas são incorporadas pela periferia.

Da dependência tolerada à desejada
A dependência tolerada começou a entrar em crise no Primeiro Mundo quando o capital privado recuperou a liberdade de que tinha sido privado pela revolução keynesiana. Esta, transformada em doutrina do poder, havia produzido os resultados esperados. Durante quase 30 anos (de 1945 a 73), as economias capitalistas se mantiveram próximas do pleno emprego, tiveram crescimento econômico mais rápido do que em qualquer outra época da história do capitalismo industrial e resgataram da pobreza a maior parte de suas classes trabalhadoras. Não por acaso, este período é chamado de os anos dourados.
Mas, nos três decênios, o capital e sobretudo o grande capital também se recuperou. Nos EUA, a potência hegemônica, o que prevaleceu foi a síntese neo-clássica, uma versão que simplifica o quadro teórico deixado por lord Keynes e modera suas aplicações políticas. Praticamente, em todo pós-guerra, os EUA usaram sua considerável influência sobre o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para restabelecer a primazia do mercado na alocação dos recursos dentro das economias nacionais e para estabelecer a plena conversibilidade das moedas. A gradual liberalização financeira resultou em perda contínua da capacidade dos governos de controlar o excedente econômico, sua apropriação e seu investimento ou aplicação.
A liberalização financeira, a partir dos 80, extravasou do Primeiro Mundo ao Terceiro. Foi importante, neste sentido, a crise do endividamento externo que atingiu grande número de países menos desenvolvidos, em particular na América Latina. Na década anterior, os grandes bancos privados multinacionais tinham aproveitado os vários choques do petróleo para captar, sobretudo no euro-mercado, muitos bilhões de dólares pertencentes aos países exportadores de petróleo, reciclando-os em seguida aos principais países em industrialização. A dependência financeira dos países menos desenvolvidos, até então dos bancos intergovernamentais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano, entre outros, passou a ser da banca multinacional privada.
Em 1982, o México sofreu uma severa fuga de capitais e deixou de servir sua dívida externa, o que colocava em perigo a existência dos bancos credores. Estes, por via das dúvidas, resolveram suspender empréstimos destinados aos demais países latino-americanos, o que tornou a maior parte deles inadimplente também. Mas, em vez do débacle bancário, que deveria seguir-se, o governo dos EUA juntamente com o Fundo Monetário Internacional e outras entidades intergovernamentais providenciaram empréstimos-ponte e, desse modo, evitaram que a crise financeira assumisse as dimensões catastróficas que atingira na década de 30.
A partir daí a tutela financeira e ipso facto política dos países semi-industrializados superendividados pelos EUA tornou-se muito mais pesada. Os países, que teimavam em manter o estatismo desenvolvimentista, foram boicotados pelo grande capital privado e público. Na Grã-Bretanha o governo Tatcher e nos EUA o governo Reagan comandavam a grande contra-ofensiva neoliberal, que foi largamente vitoriosa, inclusive na América Latina.
O primeiro Estado a abandonar toda pretensão a comandar a acumulação de capital em seu país foi o Chile, governado ditatorialmente nos anos 70 e 80 pelo general Pinochet. Em seguida, na América Latina, outros países enveredaram pelo mesmo caminho. No início dos 80, o México aboliu os controles cambiais e financeiros e abriu seu mercado interno às importações, recebendo em troca abundantes fluxos de capitais estrangeiros. Sua entrada posterior no Nafta apenas ratificou, em grande medida, uma situação que já há anos prevalecia de fato. Com a eleição de Menem, de Fujimori e de Collor, no fim da década de 80, chegou a vez da Argentina, do Peru e do Brasil. Nesses países, o desenvolvimentismo foi abandonado, o mercado interno aberto às importações de mercadorias e a economia à entrada incondicional dos capitais estrangeiros.
Do ponto de vista da situação de dependência, esta deixou de ser tolerada para se tornar desejada. Os governos de todos os países – desenvolvidos, semidesenvolvidos ou pouco desenvolvidos – passaram a depender crescentemente do capital privado globalizado. Esta dependência é algo menor apenas nas grandes potências, cujas autoridades monetárias dispõem de algum controle sobre a taxa básica de juros e sobre o montante de crédito bancário e extra-bancário, podendo com tais instrumentos condicionar a movimentação dos capitais privados. Além disso, os governos das grandes potências têm por obrigação impedir que o grande capital, em sua corrida desvairada à centralização, ponha em perigo a própria existência do capitalismo pela completa monopolização dos mercados.
Abro um parêntese para assinalar que embora o assunto seja importante, a limitação de tempo e espaço me obriga a deixá-lo de lado. A tendência imanente do capital é se fundir crescentemente, até que em cada mercado haja apenas um vendedor. Mas isso significaria o fim da possibilidade de regular a economia pela competição intercapitalista e, portanto, do capitalismo como o conhecemos. Em seu lugar, teria de surgir uma economia regulada por mecanismo político. Os capitalista estão plenamente ao par deste perigo e apoiam os Estados que os impedem de se autodestruir.
Retomando o tema em análise, esta nova situação de dependência é de certa maneira uma volta à dependência consentida, mas com alterações não desprezíveis. É como se os 30 anos de desglobalização, somados aos 30 anos dourados, não passassem de um parêntese, que a restauração da normalidade, na forma de hegemonia do grande capital privado sobre a economia capitalista, poderia fechar. A subordinação dos estados nacionais aos interesses e aos preconceitos ideológicos dos detentores do grande capital globalizado restabeleceria uma normalidade que fora perturbada por peripécias políticas, passageiras.
A tese é sedutora, sobretudo para os aficcionados da história, que não desconhecem as evidentes afinidades entre o fin de siècle anterior e o atual. Mas, é preciso também atentar para as diferenças. Para começar, atualmente a democracia é o regime da maioria dos países, significando que o desemprego e a exclusão social, normalmente exacerbados pela liberdade do capital, não são politicamente aceitáveis. No fim do século passado, desemprego e exclusão social pareciam fatalidades inevitáveis, presentes em todas as épocas históricas. Neste fim de século, está claro que o desemprego e a exclusão social puderam ser efetivamente reduzidos durante os anos dourados e que, portanto, nada têm de inevitáveis, o que explica a crescente revolta contra o neoliberalismo, tanto na Europa quanto na América Latina.
Outra diferença significativa entre os dois fins de século é que agora estamos efetivamente formando um mundo de nações. Há cem anos, a maior parte do mundo era constituída por colônias de um pequeno número de potências imperialistas. Hoje não há mais colônias quase e o mundo se compõe de mais de 180 nações soberanas. É óbvio que são extremamente heterogêneas, distinguindo-se pelo tamanho dos territórios e das populações, pelo grau de desenvolvimento e por inúmeras características culturais.
Por isso, cabe menos generalizar, inclusive com relação a situações de dependência. Certamente, hoje existem em diferentes países as três situações de dependência que distinguimos. Grande parte das nações africanas e não poucas da Ásia e da América Latina vivem em dependência consentida, no sentido de que suas perspectivas de progresso ainda estão limitadas à ampliação das vendas ao exterior de produtos coloniais. Outras nações, espalhadas pelos três continentes do Terceiro Mundo, já superaram essa etapa e dispõem de economias ainda não-completamente industrializadas. São os países que vivem situações de dependência tolerada ou de dependência desejada.
A diferença entre a dependência consentida – absolutamente geral no fim do século XIX e hoje vigente apenas nos países mais atrasados – e a dependência desejada é que a primeira prescinde da industrialização e da urbanização e a última visa completar estes processos para incorporar as nações dependentes ao Primeiro Mundo. Não há, portanto, qualquer volta possível a uma normalidade liberal como a que vigorou no século XIX. A nova dependência do grande capital globalizado é desejada porque vista como um ingrediente indispensável num mundo em que as nações perdem significado econômico e em que impera a liberdade de iniciativa das empresas e dos indivíduos.
A dependência desejada ocorre hoje em todas as nações, das semi-industrializadas às superindustrializadas. Esta é a mudança essencial que é preciso analisar. Durante a época da globalização dirigida (1945-80), os países menos desenvolvidos dependiam economicamente tanto dos capitais multinacionais provenientes dos países adiantados quanto dos governos desses países, em particular do governo dos EUA. Grande parte do fluxo de financiamentos recebidos pelos países dependentes se originava de fontes públicas nacionais ou intergovernamentais (como o Banco Mundial, o Banco Interamericano e seus congêneres da Ásia e da África).
Mas, os governos dos países adiantados não se subordinavam ao grande capital, fosse este nacional ou estrangeiro. No auge do keynesianismo, mesmo bastardo, como o adjetivou Joan Robinson, os Estados nacionais dispunham de amplos setores produtivos estatais, que abrangiam os principais serviços de infra-estrutura e partes da indústria pesada. Somava-se a ele um sistema abrangente de seguridade social, o que levava a participação do setor público no PIB a se aproximar de 50%, sobretudo nos países europeus. Esse contexto permitia aos governos regular a conjuntura apenas pela modulação do gasto público.
A mudança a partir dos anos 70 foi gradativa mas, passados 25 anos, o panorama é outro. Ela tem por motor a globalização do capital, que ocasionou uma transformação da classe dominante. O setor dominante da classe capitalista, na maior parte dos países desenvolvidos (exceto os EUA e o Reino Unido) estava ligado umbelicalmente ao mercado interno. No Japão, na França, mas também na Alemanha Ocidental e na Itália, Estado e capital nacional tinham construído uma coordenação eficaz e mutuamente satisfatória, na qual a burocracia estatal estabelecia metas e estratégias de médio e longo prazos e convidava a iniciativa privada a realizá-las, com meios providos por bancos governamentais e subsídios pagos pelo orçamento nacional.
Com a globalização tanto de intermediários financeiros quanto de empresas industriais, o setor dominante – formado antes e depois pelas maiores empresas – da classe capitalista passou a ser composto por detentores do controle e da gerência de empresas que tinham interesses nos quatro cantos do mundo e cujas vantagens comparativas derivavam desse fato. Em cada país, com o mercado interno aberto aos capitais e aos produtos do resto do mundo, os ganhadores do jogo competitivo passaram a ser os capitais multinacionais, que mais podiam importar matérias primas, componentes e produtos acabados de filiais em países atrasados e de trabalho barato.
A mudança de hegemonia econômica foi acompanhada por uma ruptura ideológica de todas as maneiras funcional. Em poucos anos, a nova fração capitalista dominante substituiu o keynesianismo pelo monetarismo, o dirigismo econômico pelo neoliberalismo. Com rapidez surpreendente o consenso mudou. O pleno emprego passou a ser uma meta inatingível e os esforços para mantê-la próxima dele passaram a ser tidos como causas da estagflação. A nova ortodoxia sustenta agora que os mercados, deixados em liberdade, ou seja, livres da tutela estatal, praticamente sempre alcançam equilíbrios ótimos.
O desemprego, qualquer que seja o seu nível, é sempre voluntário: as pessoas que alegam falta de trabalho, na realidade não aceitam os níveis de remuneração que o mercado oferece e elas têm direito de estar desempregadas até que encontrem a demanda que lhes pague o que acham que valem. Esta teoria foi formulada por Milton Friedman e é encontrada hoje nos livros-texto utilizados no ensino nas faculdades de economia. Ela obviamente é desconhecida do grande público, que sabe que o desemprego é uma maldição e que considerá-lo voluntário só pode ser humor negro. Mas a teoria, acessível apenas a iniciados, fundamenta as políticas econômicas aplicadas em cada vez mais países desde os anos 80.
Os governos que compartilham desta nova/velha ideologia desejam a dependência dos capitais globalizados. O neoliberalismo defende a liberdade dos mercados contra qualquer interferência política neles porque acredita que os detentores dos capitais – principalmente os administradores de grandes blocos de riqueza financeira, como os fundos de pensão e as reservas técnicas das seguradoras – têm racionalidade e dispõem de todas as informações necessárias para investir os capitais de modo a maximizar o bem-estar social global.
Esses governos desejam se submeter aos critérios dos detentores de capitais para merecer as suas preferências. Estes critérios são: manter plena liberdade de movimento para os capitais, assegurar o equilíbrio orçamentário e a estabilidade dos preços, deixar o câmbio flutuar mas dentro de limites pré-fixados, liberar o mercado de trabalho de restrições à livre contratação e entregar à iniciativa privada a prestação de serviços públicos, da telefonia ao seguro saúde e ao seguro social. Os governos neoliberais almejam cumprir tais objetivos por convicção e acreditam que merecem a preferência do capital globalizado.
A dependência desejada é qualitativamente distinta das situações anteriores de dependência à medida que estas últimas atingiam unicamente as nações menos desenvolvidas. O atraso econômico relativo era a base da qual decorria a situação de dependência. A atual situação de dependência reflete a impotência dos Estados nacionais – em maior ou menor medida, todos – face ao capital privado altamente concentrado e globalizado. Esta impotência se deve mais à globalização do capital do que à liberalização dos movimentos de valores.
É que as empresas autenticamente transnacionais não são mais firmas de algum país adiantado que abriu filiais no Terceiro Mundo. Elas já são – e tendem cada vez mais a ser – firmas sediadas em quase todos os países, sobretudo nos adiantados. E como são frutos de sucessivas fusões e aquisições, muitas delas têm suas matrizes em mais de um país. Antigamente, a Shell e a Lever eram dois exemplos conhecidos de empresas binacionais, pois ambas são anglo-holandesas. Mas, eram exceções. Atualmente estão se tornando a regra entre os conglomerados maiores.
A trilateralização das transnacionais está sendo impulsionada pela concorrência tecnológica entre elas. Há dados que indicam que os custos de novos desenvolvimentos tecnológicos estão subindo muito, o que provavelmente significa que a exploração das novas técnicas está entrando numa fase de rendimentos decrescentes. Este seria o fator que levaria as grandes firmas transnacionais a se fundir ou a se associar, de modo a poder participar da produção científica de todos os grandes centros em atividade nas economias mais adiantadas.
A dependência desejada, se estas hipóteses estiverem corretas, decorre crescentemente da não coincidência territorial entre o âmbito de atividades das grandes transnacionais e o âmbito de exercício da soberania dos governos. As grandes transnacionais tendem a assumir a forma de empresa-rede, composta por grande número de unidades semi-autônomas – empresas franqueadas, subcontratadas, em parceria etc. – enquanto os Estados nacionais estão apenas começando a se agrupar em blocos regionais. A União Européia é destes blocos o mais antigo, no qual o processo de unificação econômica, social e política está mais avançado. Mesmo na União Européia, no entanto, a integração intergovernamental ainda é incipiente se comparada com a integração em rede de empresas em todos os quadrantes.
Para terminar esta breve discussão das tendências atuais da dependência é preciso lembrar que, não obstante tudo isso, as pessoas continuam morando, trabalhando e fazendo política em países específicos. Para a maioria da população, a dependência desejada se traduz em crises de reestruturação industrial, que eliminam milhões de postos de trabalho, e ataques reiterados a direitos decorrentes do Estado de bem-estar social, cuja única justificativa é a necessidade de equilibrar o orçamento público e reduzir a carga fiscal sobre as empresas para reter o capital que se encontra no país e atraír mais capital, que venha eventualmente a gerar emprego.
Não é provável que a maioria dos cidadãos dos diferentes países – muito, pouco ou medianamente desenvolvidos – aceite passivamente tal justificativa. O que configura um dilema: ou os países ampliam o território em que seus Estados exercem a soberania, acelerando sua unificação política ou ao menos fortalecendo entidades intergovernamentais que possam confrontar e regular as grandes transnacionais, ou a nova dependência corroerá a democracia política, ao retirar da agenda política das nações as questões que mais de perto interessam aos cidadãos.


  1. Paul Singer, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.